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Dalai Lama no Anhembi, 14/09/11 |
Essa é uma ótima definição: Dalai Lama é provavelmente o líder espiritual mais importante do mundo. Sim, porque Bento XVI é visto muito mais como o chefe de uma organização, a Igreja Católica, do que como um líder espiritual. Alemão durão até alguns anos atrás na função de gerente geral do Vaticano, fica difícil para a maioria das pessoas, até católicos, imaginar que ele se revestiu de repente de uma verdadeira santidade, mesmo que sua imagem tenha sido suavizada.
O caso de Dalai Lama é diferente. Suas funções, os papéis que desempenhou na vida nunca foram antagônicos, tudo o que ele fez parece ter sido fruto de uma necessidade, tanto espiritual como existencial. A política sempre entrou nessa equação, porque ele representava o Tibete, um país oprimido e invadido pela China. Representava, assim, tanto a espiritualidade budista mais ‘pura’, como o anseio justo de liberdade. Houve uma época em que alguns filmes lançados contavam a sua história, como Kundun e Sete anos no Tibet.
Líder político do Tibete no exílio, Dalai Lama renunciou à essa função em março deste ano. Isso significa, em suas palavras, passar a responsabilidade para alguém a ser eleito. Aliás, um dos motivos para o fascínio em torno de sua figura é ter sido nomeado chefe de estado aos 15 anos, e eleito líder espiritual do Tibet – ‘dalai lama’ – aos 4!! Pessoas que o viram anos atrás e o vêem hoje acham que essa renúncia o deixou mais leve. Pode se ocupar apenas com espiritualidade, sem se preocupar com a política.
Mas se você pensa que ele esteve no Brasil na semana passada só para falar de meditação, está muito enganado. A postura e as palavras de Dalai Lama surpreendem pela simplicidade, por não tentar causar algum tipo de impacto. Suas palestras podem ser vistas em vídeo, e algo que me surpreendeu, por exemplo, foi sua afirmação de que não devemos abandonar nossa religião de origem, seja o catolicismo, ou judaísmo, ou outra qualquer, para abraçar o budismo. Talvez ele esteja propondo um sincretismo religioso, talvez seja uma precaução contra os ‘modismos’ místicos, mas o fato é que essas palavras transmitem despreendimento, modéstia e equilíbrio.
E do que ele veio falar? Estive no Anhembi no último sábado (14) e, como mencionei, nada do que ele diz calmamente, sem muita ênfase, tem o poder de fazer caírem os queixos. Mas, ao mesmo tempo, parando para pensar, um líder espiritual nunca diria o que ele diz. Nenhum papa ou cardeal se arriscaria.
No primeiro momento, ele falou da globalização. Se você acha que ele falou mal, errou. É positivo que todos os países dependam uns dos outros, economicamente, disse ele. Assim, o senso de responsabilidade precisa ser muito maior (como estamos vendo na crise atual), em relação a qualquer medida dos governos. E talvez até a pressão de governos ‘de fora’ seja positiva para que o coletivo, ou seja, o interesse de todos ou da maioria, seja preservado. Questões ambientais também ultrapassam fronteiras de países, e no quesito ‘responsabilidade’ isso é positivo. Em outras palavras: hoje, é preciso ter uma consciência maior do que representamos para ‘o outro’; é preciso respeitar ‘o outro’, é preciso enxergar ‘o outro’. A única coisa que ele não disse foi ‘é preciso amar o próximo como a si mesmo’, mas até que essa afirmação cristã se encaixaria. O contexto sócio-político-moral, no entanto, é bem diferente.
E aí ele falou de diferenças sociais e de corrupção. As diferenças, claro, não são positivas, e a corrupção ele qualificou de ‘câncer’ que corrompe e adoece a sociedade. E então fez perguntas à grande plateia. Achávamos que no nosso país as diferenças sociais são grandes ou pequenas? Todos abriram os braços. E depois, achávamos que no nosso país e na nossa cidade havia pouca ou muita corrupção? Todos esticaram os braços até acertar a cara do vizinho. Recado dado! O mais engraçado é que Gilberto Kassab tinha aberto o evento e estava por ali. Ah, Dalaizinho, que bom é ter alguém de fora e de tão longe que entende tão bem o nosso dia-a-dia! E não tem medo de falar no assunto...
Ele aborda muitas questões. Condenou a violência e a guerra, mas explicou que a solução para esses problemas é “aprender a lidar com as emoções internas negativas”. Não aprofundou, mas é exatamente o que eu penso: longe de apenas criticar tanto países como pessoas que são ‘agressivos’, o que devemos fazer é perceber a agressividade e a violência que estão em nós. E pode ter certeza de que elas estão! A religião, disse ele, é uma forma de criar valores internos positivos, que podem combater os sentimentos negativos. (E agora digo eu: os sentimentos negativos podem ser combatidos, mas não negados; se tentamos reprimi-los, eles aparecem de forma disfarçada.)
E, embora tenha falado de religião, Dalai Lama lembrou que há muitas pessoas que não seguem nenhuma religião, mas nem por isso deixam de merecer respeito, porque os sentimentos de compaixão, e principalmente a ÉTICA e a MORAL podem (e devem) ser estimulados, mesmo em contextos não religiosos. E eu pensei, será que falar de ética no Brasil tem algum efeito prático? Estamos tão acostumados com absurdos éticos nas manchetes dos jornais que não sei não...
O que fazer com esse ‘mercado da espiritualidade’ que oferece soluções a torto e direito, com inúmeros mestres e guias fazendo suas propagandas? Ler livros, respondeu o lama, e se informar muito bem a respeito das linhas ou filosofias que nos interessam. Lembrou ainda que os inimigos que encontramos pela frente são aqueles que nos permitem aprender e exercitar os nossos valores internos, e exercitar a paciência. Na prática, significa: devemos aprender a ser tolerantes com os corruptos, por exemplo, mas isso não significa aceitar e se submeter a eles, porque alguma ação deve ser feita para combater esse mal. Ou, explicando de novo, de nada adianta odiá-los (OK, admito que os odeio, não sou tão espiritualizado assim...), porque só uma ação equilibrada e tolerante e vigilante poderá impedir que eles voltem a repetir esses atos.
Pena que não pude ver as outras palestras, mas acho que o recado foi dado. Vale ainda acrescentar que ele é muito bem humorado, faz brincadeiras com as pessoas que estão em volta no palco, situações das quais ele mesmo acha graça (em uma das palestras, ficou segurando o microfone para o tradutor falar), e no meio da palestra que eu vi deu um longo bocejo no momento em que estavam traduzindo suas palavras para o português. Ficou claro para todos que ele é um exemplo único de homem que nunca usa máscaras...