sábado, 26 de fevereiro de 2011

LIXO MILIONÁRIO

  
É hoje! Ou melhor, amanhã.  O Brasil ganha ou não ganha o Oscar?
Basta ter um filme com personagens brasileiros para começar a torcida. Mesmo a diretora sendo inglesa. Mas o personagem central é Vik Muniz, artista aclamado internacionalmente. Se depender de fama, reconhecimento, o filme tem chances, mesmo não sendo o mais cotado.
Na Idade Média, o grande sonho do homem era transformar chumbo em ouro. Hoje, transformar lixo em ouro já é uma realidade - para poucos. Vik Muniz conseguiu a proeza, tirando fotos dos catadores no aterro sanitário e compondo imagens com sucata. Mas basta ver o filme para entender que o verdadeiro tesouro não são as obras em si mesmas, mas o elemento humano que as compõe. O preço da venda dos quadros embute esse ‘custo social’, em uma época em que tanto a questão ecológica quanto a social têm um peso grande na consciência dos compradores.
O maior mérito do filme é esse: mostrar uma comunidade que se formou naquele local, contra todas as expectativas. As pessoas que a compõem têm em comum a postura altiva, orgulhosa mesmo, a despeito de todo o preconceito que sofrem por estarem ali, dividindo o espaço com urubus. As mulheres, por exemplo, insistem que preferem esse trabalho a enveredar pela prostituição. E a plena consciência de que estão ajudando o meio-ambiente com a reciclagem dignifica suas dificuldades. Em outras palavras: o ouro já estava ali, latente, apenas oculto pelos dejetos.
A luta é árdua. E o filme se transforma em uma história de superação – o que, por sinal, combina muito com Hollywood. A melhor cena é a do presidente da Associação dos Catadores, Tião, que vai a Londres acompanhar o leilão do ‘seu’ quadro (o mesmo do poster). O assombro em seus olhos diante dos incontáveis lances que vão tornando a obra cada vez mais cara é antológico. É o momento da transformação. Essa, aliás, é uma das dúvidas levantadas pelo filme: vale a pena tirar as pessoas de seu habitat, levá-las para Londres, deixá-las deslumbradas com um mundo rico e cheio de glamour? Tião disse que pretende ir à festa do Oscar de limusine (veja aqui), e sinceramente não tenho uma resposta.
O ponto fraco do filme é a insistência de Vik Muniz em se apresentar como pessoa pobre, que passou grandes dificuldades até chegar ao sucesso internacional. OK, isso poderia ser dito, mas há uma distância entre ele e os outros pobres do filme. Vik não pertence a essa comunidade, e um indivíduo nunca vai ter a força de um grupo. Além disso, o que passou, passou. Lamúrias sobre o passado não têm nem um décimo da força das imagens do lixão – até mesmo porque é duplamente através das imagens (dos personagens em seu cotidiano e dos quadros feitos a partir deles) que o filme se realiza.
Mas a gente torce. Basta dizer Brasil, a gente está torcendo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A Polêmica do Professor de Santos

Um professor de matemática do primeiro ano do ensino médio de uma escola estadual de Santos, na Baixada Santista, está sendo acusado de fazer apologia ao crime por passar aos alunos seis exercícios com enunciados baseados em tráfico de entorpecentes, prostituição, roubo de veículos, assassinato e uso de armas de fogo. Nas questões, o professor pergunta, por exemplo, quantos clientes cada prostituta deverá atender para que o cafetão compre uma dose diária de crack . (Jornal da Tarde, 19/02/2011).
Raras vezes o assunto ‘Educação’ dá manchete de primeira página. Como o professor de Santos não se pronunciou ainda, cabe a nós imaginar o que havia por trás da polêmica. Evidentemente, há muita gente condenando, achando tudo um absurdo. Como podem os puros e ingênuos alunos serem expostos a esse conteúdo? Por essas e outras é que o professor já está sendo indiciado por apologia ao crime.
Mas, cá entre nós, isso é Paulo Freire. Os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) indicam que o professor deve adaptar a sua matéria à realidade do aluno. Não era isso que ele estava fazendo? Ele também perguntava sobre roubo de carros, disparos com armas etc. Será que os alunos vivem essa realidade?
Sobram dúvidas. Mas, imaginando o cotidiano desse professor, arrisco dizer que ele não estava fazendo apologia ao crime coisa nenhuma. Esses exercícios podem ter sido, apenas, uma tentativa desesperada (ou revoltada) de capturar a atenção dos alunos. E isso não é nada fácil, como sabemos nós, professores.  É muito provável que os alunos conversem sobre esses assuntos. É possível que estejam próximos dessa realidade. Nem por isso acho que a ideia foi boa. Mesmo que tenha sido uma piada, foi uma piada de mau-gosto. Nenhum professor deveria naturalizar o crime, torná-lo banal. Isso é claro.
Menos claras são as reações das autoridades. Na tentativa de provar que a juventude é defendida, que os jovens estão numa redoma de vidro – à prova de balas – condena-se imediatamente o professor, instaura-se um inquérito. OK. Que tal ir pessoalmente onde moram os alunos e verificar se de fato eles não caminham entre balas perdidas? É sempre mais fácil achar um bode-expiatório do que constatar a precariedade do nosso sistema social. Sai mais barato.
A geleia geral da hipocrisia brasileira impede que possamos avaliar cada situação de maneira imparcial. Mas na matéria do Jornal da Tarde havia o depoimento de pais e alunos defendendo o professor. E por experiência sei que o adolescente não precisa morar no Jardim Ângela para gostar de armas de fogo e violência – basta ver filmes americanos. Falta ainda a informação de que aquelas perguntas polêmicas já circulavam na Internet. Essa é exatamente uma das estratégias que já usei em sala, usar textos e vídeos que se tornaram populares.

Como se vê, condenar é fácil, compreender é sempre mais difícil. Mas se você é um dos que acham que os jovens devem ser poupados desses temas, que tal exigir que haja mais investimento na escola pública? Que tal exigir que a escola seja mais comprometida com a própria realidade, no sentido de melhorá-la? Para isso, é claro, não basta fazer problemas do tipo: “Todos os dias cada aluno trouxe uma maçã para a professora. Quantas maçãs ela terá comido no fim do mês?” Porque a resposta será uma grande indigestão.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Educação Derreteu













Pode o ruim ser pior que o péssimo?
Se você leu o post abaixo, vai entender. Eu estava procurando uma vaga no ensino público, depois de ser enxotado de uma escola do Estado, aqui na Vila Madalena. Fui para o ensino Municipal. Fizeram o cadastro, mas dias se passaram e nada.

Insisti. Perguntei. Telefonei para 1.537.489 pessoas. A culpa é do “sistema”. O cadastro da prefeitura está junto com o do estado (com minúscula), e isso depende de o sistema “rodar”. Quer dizer, não depende de alguém que tenha boa vontade, depende de uma Entidade Superior que consiga dar o tranco inicial no sistema, assim como Deus criou a noite e o dia fazendo a Terra girar.  Mas como quem tem boca vai à Roma, descobri que haviam transferido o pequeno para outra escola estadual, bem distante. Sem me perguntar. Sem avisar. Sem dar uma pista. Ou seja, nunca conseguiríamos a vaga, porque o sistema indicava que ele estava matriculado. É preciso dizer mais alguma coisa?
Não acho mais que seja desrespeito. Acho que o sistema de Educação no Estado derreteu. Deve ser isso.  Passou para o estado líquido. E agora deve estar evaporando.
A esperança é que a rede municipal possa incluí-lo. E tudo indica que o ensino municipal de São Paulo é melhor do que o estadual. E por que seria? Acho que pela alternância de partidos no poder. Sim. Só pode ser isso. A alternância deu algumas chacoalhadas e a coisa melhorou. Não encontro outra explicação para o fato de o Ensino Estadual ter derretido. Amém.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A Educação sem Educação

A Educação Paulista anda totalmente sem educação. Vejam só: por razões que não importa explicar agora, tenho um filho que saiu da escola particular e foi para a pública.
Marinheiro de primeira viagem, não esperava que a escola pública fosse um prodígio de qualidade, claro. Mas também não esperava tanto descaso. A matrícula foi efetuada, os documentos foram entregues, a foto, e o que aconteceu no primeiro dia de aula? Informaram-me que não haviam formado turma. Ou seja: vá procurar vaga em outro lugar. No dia em que as aulas começaram.
E a culpa é da burocracia. Porque a Secretaria Estadual de Educação determina que exista um mínimo de 25 alunos por sala, porque a Secretaria decide se a turma vai abrir ou não, porque a Secretaria... enfim, suponho que a Secretaria Estadual de Educação também determine que ninguém seja avisado se vai abrir turma, que nenhum telefonema seja dado, que pais não possam procurar vaga em outra escola com 2 dias de antecedência, pois foi isso que aconteceu. Mas eu tenho certeza de que, se perguntasse diretamente para a Secretaria de Educação, a responsabilidade seria ainda transferida para outra instância. Porque essa é a essência da burocracia: a existência de um poder inalcançável, que paira sobre a cabeça de todos e justifica todas as desgraças, os deslizamentos, o desmando, a desorganização, o desprezo enfim pelas necessidades humanas mais óbvias. DES como se pode perceber é um prefixo latino que indica falta, oposição, negação: DES-respeito total.
E tudo isso vem de um governo que... bem, todos sabem que é o mesmo partido que governa o Estado há séculos. O que me faz concluir que a acomodação, a aceitação do inaceitável também faz parte da educação do brasileiro. Não é novidade que a educação pública, pelo menos aqui em São Paulo, é péssima. Alunos frequentemente não sabem ler – e entender – uma notícia de jornal. E o que foi feito para mudar isso? Quem se mobilizou?

Isso é um desabafo, sim. Por mais que soubesse, não imaginava que o primeiro contato direto com a educação pública seria tão ruim. E pelo nosso histórico, fica difícil ver alguma luz no fim do túnel... Não sei ainda qual a solução, nem para o meu caso particular, muito menos para o coletivo. Quem tiver alguma palavra positiva para dizer que a diga.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Elas Encantam ou Desencantam?

Olhe para a foto ao lado. Preste atenção, pois quando você for velhinho, ou velhinha, ela será novamente publicada como símbolo de uma mudança importante. Pela primeira vez na História, os dois principais países da América Latina terão sido governados por mulheres. E daí? pergunta você. Daí que há menos de 10 anos isso teria sido impossível.
Minha tese é simples: sem a constante influência dos movimentos sociais que nas últimas décadas lutaram pelos direitos das minorias, isso não teria acontecido. Some-se o fato de que os Estados Unidos têm, também pela primeira vez, um presidente negro. Coincidência? Justamente no país em que o racismo teve uma feição separatista e violenta? É sabido que o movimento em prol dos direitos dos negros nos EUA foi pioneiro. Coincidentemente, o movimento feminista com mulheres queimando sutiãs aconteceu na mesma década (anos 60). Mas foi preciso que a ideia de igualdade de direitos e a mensagem anti-preconceito fossem marteladas por décadas até serem assimiladas. (Falo bastante sobre isso em meu livro Preconceito em Foco). A  semente foi plantada, germinou, e os frutos puderam ser colhidos.
Mas... por trás dessas mulheres havia um homem. Não é demérito.  Mas é fato. Elas foram conduzidas. No caso de Cristina, até pior, pois o homem era seu marido – que seria o verdadeiro governante. Então não houve avanço? Muita gente criticou a forma como o processo se deu, concluindo que independência feminina, de fato, não havia nenhuma. Para mim, porém, isso apenas demonstra a capacidade que tem o ser humano de adaptar, conciliar, acomodar, sem necessariamente destruir. A ideia de uma mulher ‘capaz’ vem acompanhada da influência ou ascendência masculina (machista, portanto) que garante uma  continuidade entre o novo e o velho. Temos o novo sem ruptura. E a verdade é que não estamos em um momento revolucionário. Barak Obama, por sinal, traz a mistura de etnias em seu código genético, indicando, pelo menos em tese, o gene da conciliação.
O ser humano é assim, fazer o quê? Mulheres realmente independentes (o primeiro exemplo que me vem à cabeça é Marta Suplicy) tendem a causar antipatia, oposição. Outra política que me vem à cabeça, Roseana Sarney, tem a onipresente figura do pai L como avalista de sua trajetória.
É preciso se conformar. E as dúvidas no caso de Dilma não estão relacionadas à sua capacidade administrativa – nem mesmo a oposição levantou essa bandeira. A dúvida diz respeito à atuação política, à capacidade de ser uma líder reconhecida e votada como tal. Também é preciso lembrar que, mesmo nos países ricos, a presença de mulheres no cargo máximo é ainda exceção. O melhor exemplo é Margaret Thatcher, mulher solitária entre líderes homens. Mas isso aconteceu justamente na Inglaterra, país forjado sob a liderança de mulheres fortes, como a rainha Vitória, que governou por mais de 60 anos. A combinação das palavras MULHER e LÍDER é rara.
Dilma sabe de tudo isso. Durante o seu primeiro mês, andou tateando e se escondendo. Presente na tragédia no Rio,  parecia procurar o tom certo, a expressão certa, como se estivesse pensando: “O que um governante compromissado com seu povo faz diante da catástrofe?” O tom pesaroso, o cenho franzido foram a resposta. Mas imagino que haverá ainda momentos de hesitação.
Na semana passada, o encontro com a presidente argentina foi o momento em que, pela primeira vez, ela parecia estar à vontade. O rosto perdeu a rigidez habitual. É que em muitos aspectos ela tinha diante de si, pela primeira vez, uma igual. É compreensível. A mudança foi tão evidente que eu logo pensei: “Dilma desencantou”. Até que enfim. Torço para que o encantamento produzido pelo seu mentor não dure muito. Prefiro a autenticidade.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Chore para o Céu: os Castrati


Você se lembra do belo filme Entrevista com o Vampiro, com Tom Cruise e Brad Pitt? A novidade é que a autora do livro, Anne Rice, não faz apenas histórias com seres das trevas como vampiros e bruxas. Em Chore para o céu (Cry to Heaven), ela descreve o mundo dos eunucos do começo do século XVIII na Itália, portanto trata-se de um livro historicamente fundamentado, fruto de longa pesquisa. É de tirar o chapéu, numa época em que todo mundo usava chapéu.
Imagine um ser que não era considerado homem nem mulher. Situação muito vantajosa em certos aspectos, pois sua sexualidade estava aberta a todas as possibilidades, mas desvantajosa também, pois eram seres à margem dos rituais sociais restritos aos ‘normais’. Uma mulher podia levar um eunuco a tiracolo, e isso seria considerado natural para uma amante das artes. Se de fato ela amaria as artes ou o corpo infértil – e seguro – do seu amigo isso ficaria apenas nas entrelinhas. Os eunucos eram, em suma, adorados pela sua performance no palco da ópera, mas ainda assim, marginais.
Li o livro em inglês, presente do meu amigo N. Imagino que em português também seja possível apreciar o estilo contido, descritivo e ‘trabalhado’ do original. O enredo é cativante.  Uma das marcas registradas da Anne Rice é o erotismo, em particular o homoerotismo. Isso deve afugentar muitos leitores nos EUA, sempre atentos aos ‘desvios’, mas ela não parece disposta a abandonar esse pendor. Os críticos vêem nela uma tendência para o sombrio, o estranho, para os sentimentos mais pesados, e nesse contexto as descrições sexuais são uma parte inseparável do todo. Ora, sejamos francos: enquanto os moralistas rotulam cenas sexuais de “apelativas, pornográficas”, outros encontrarão nessas cenas o seu maior divertimento. Quanto a mim, acho que pelo ineditismo todos os detalhes dessa singular condição – os castrati – são fonte de grande curiosidade e indispensáveis. A sexualidade, um dos ‘detalhes’ mais importantes, não poderia ser deixada de lado.
Castrati eram meninos que tinham sua masculinidade ‘cortada’ numa idade tenra. Isso quer dizer: o saco escrotal era ‘esvaziado’, gerando alterações hormonais, mas continuavam tendo um pênis. Sua voz não engrossava, e ficavam ainda mais altos do que homens normais, com braços mais longos, porque sem hormônios produzidos pelos testículos (testosterona) a ossificação não enrijece como normalmente ocorre.  Seus corpos eram muito flexíveis, o que incluía a caixa toráxica.
Contar o enredo de um livro ou filme é um pecado mortal. Como quero ir para o céu, vou apenas dizer três coisas. A Itália mostrada no livro (em 1725) era ainda formada por cidades-estado independentes como Nápoles, Veneza, Florença, Roma. Ou seja, a Itália ainda não existia, a unificação só ocorreria em 1861. O que me faz pensar, vejam só, que o Brasil é um país mais antigo que a Itália!! Não é incrível?
Outra é que o livro tem tudo a ver com a literatura gótica que fazia sucesso naquela época. Não há nada de sobrenatural na história, mas a atmosfera de mistério, aflição e terror que prevalece nos remete à recusa dos ideais iluministas e racionalistas que estavam sendo difundidos. Isso tem tudo a ver com as outras obras de Anne Rice, sempre muito medievais em sua concepção.
E quanto às muitas cenas de sexo, bem, existe nelas uma qualidade insuspeita. Elas representam, para o personagem principal, uma progressiva e irreversível libertação. E a autora consegue transmitir muito bem o alcance e o significado dessa liberdade: significa abandonar o conforto de um sistema de pensamento feito de pré-conceitos arraigados em prol de um vácuo – sim, um vazio - momentâneo onde, depois, novas sensações e sentimentos podem surgir, uma autêntica conquista para o personagem. Há uma vertigem nessa passagem. Vertigem, no entanto, extremamente recompensadora. Se você não tem medo de altura, leia.